VAREJÃO, Adriana. Chambre d’échos / Câmara de Ecos. Entrevista com Hélène Kelmachter, 2004. In: Adriana Varejão. Chambre d’échos / Câmara de Ecos. Fondation Cartier pour l’art contemporain / Actes Sud, 2005.

HÉLÈNE KELMACHTER: O título que escolheu para a sua exposição é tirado de um livro de Severo Sarduy sobre o Barroco... A sua obra, alimentada por múltiplas referências, é ela própria uma espécie de “câmara de ecos”...
ADRIANA VAREJÃO: Severo Sarduy se refere à “câmara de ecos” como o espaço onde escutamos ressonâncias sem nos ater a uma seqüência ou a qualquer noção de causalidade, onde o eco precede, muitas vezes, a voz.1 Ele se refere também à inversão do enredo histórico conhecido, a uma narrativa sem datas. Dessa maneira, minha narrativa não pertence a um tempo ou lugar, ela se caracteriza pela descontinuidade. Ela é um tecido de histórias. Histórias do corpo, da arquitetura, do Brasil, da tatuagem, da cerâmica, dos azulejos antigos, portugueses, ou dos modernos e vulgares, dos mapas, dos livros, da pintura...

H.K. Qual foi o seu primeiro contato com o Barroco? Será que a sua descoberta da igreja de Ouro Preto serviu de ponto de partida da sua obra?
A.V. Meu primeiro contato com o Barroco se deu através de um livro sobre igrejas barrocas no Brasil. Eu já costumava saturar a tela com muita tinta, criando superfícies bastante espessas. Foi quando estive em Ouro Preto pela primeira vez. Fiquei realmente chocada, em êxtase. Era a primeira vez na vida em que entrava numa igreja barroca. Essa igreja ficava num dos pontos mais altos de Ouro Preto e se chamava Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do Alto da Cruz, mais conhecida como Santa Efigênia. Era como se a matéria “dançasse”. Forte, viva, potente, pululante. Aquilo era para mim uma estranha alquimia entre o ouro e o sangue, entre a riqueza e o drama. Me voltei para Minas, para suas pequenas cidades históricas, suas montanhas, cachoeiras e pedras, e especialmente para Ouro Preto. Aquelas igrejas eram caixas de jóias que guardavam complexas e fascinantes jóias carnívoras, capazes de ingerir qualquer elemento alheio, fragmentos dispersos, acumulando-os, deformando-os e integrando-os ao seu universo sagrado.

H.K. Qual é a sua definição de Barroco? Acha que se pode falar de uma estética barroca contemporânea?
A.V. O Barroco é um estilo sem período de tempo, onde se compreende que a arte nada mais é que pura cultura. Que a arte se alimenta da arte, e não da natureza. O carnaval do Rio é barroco. O desfile das escolas de samba é a maior ópera barroca da face da terra. Na literatura, autores como Severo Sarduy, Lezama Lima, Guimarães Rosa e Zola, entre outros, são barrocos. No cinema, Glauber Rocha, Peter Greenway, Derek Jarman, David Cronemberg. O Barroco também fala de travestimento, troca de pele, maquiagem, artifício. A Louise Neri, num texto incrível intitulado “Admirável mundo novo”, que escreveu sobre o meu trabalho, refere-se ao ciborgue como a última criação do Barroco. O ciborgue é um híbrido de máquina e organismo. Ela compara algumas de minhas obras a estes corpos biológicos híbridos.

H.K. O Barroco é marcado pela teatralidade. É um cenário, uma aparência que deixa entrever que há mais qualquer coisa por detrás. Um pouco como a carne viva que irrompe do interior das sua telas...
A.V. O Barroco vive de uma interioridade absoluta. De uma cisão entre a fachada e o dentro, entre exterior e interior. Mas como em uma mesma dobra, que repercute dos dois lados. Nesse sentido, as incisões em minhas telas tendem a revelar um interior carnal que transborda para a superfície. Através da incisão eu relanço um lado sobre o outro. Assim se harmonizam em meu trabalho corpo e cultura, figura e geometria, mínimo e acúmulo, transparência e espessura, espiritualidade e visceralidade, razão e sensualidade plástica.

H.K. Essa materialidade é também uma forma de questionar a própria pintura.
A.V. Quando penso em carne, penso no “Saturno” e no “Tête de Mouton”, de Goya, no “Boi Esquartejado” e em “Lição de Anatomia” de Rembrandt, em Géricault, Bacon. Ou seja, na pintura em si. Não gosto quando associam a carne em meu trabalho ao “martírio dos povos colonizados”. Prefiro o papel de agente que o de vítima. Mais Juliette que Justine... Tenho me interessado muito pela literatura libertina, e especialmente por Sade. Sade opera diretamente na linguagem, constrói suas cenas como num teatro do seu desejo. Prefiro pensar a questão da carne e do corte em minha obra no campo dessa dimensão erótica da linguagem. Li algo maravilhoso que Philippe Sollers escreveu sobre Sade, comparando sua escrita a uma gravura instantânea proposta aos nervos, onde a língua é sua água-forte, seu buril, sua ponta seca, seu ácido temperado. Foi pensando nisso que o convidei para o texto de apresentação dessa exposição. A carne, para mim, está mais ligada à idéia de erotismo presente no Barroco. É o espaço da abundância e do desperdício em função do prazer, da luxúria. Para mim, a carne é a metáfora da talha barroca, coberta de ouro. É pura voluptuosidade.

H.K. Um erotismo que é presença difusa em toda a sua obra. Uma presença por vezes alusiva, como nas esculturas Linda da Lapa e Linda do Rosário...
A.V. Sim, é verdade. Para esses trabalhos tridimensionais, que são fragmentos de arquiteturas, parto muitas vezes de fotografias que tiro em canteiros de demolições onde encontro destroços de paredes ainda cobertas de azulejos. Enquanto preparava essa exposição, soube pelos jornais que um prédio desabara no centro do Rio. Era um hotel de encontros cujo nome era Linda do Rosário. O incidente aconteceu na hora do almoço. Sob os escombros, encontraram um casal que estava provavelmente fazendo amor e conhecendo uma pequena morte. De suas ruínas tirei o modelo para essas obras.

H.K. Esses fragmentos de paredes definem também uma espécie de geografia pessoal e íntima do Rio. Como a escultura Linda da Lapa, onde se pode ver um motivo de cerâmica vermelha, retirado directamente de um pequeno restaurante na Lapa!
A.V. O restaurante a que você se refere é o Nova Capela, e a Lapa é o epicentro da boemia carioca, faz parte da minha história pessoal. É engraçado transformar esse lugar em ruína... Caetano Veloso, numa bela canção em que alude a Lévi-Strauss em sua passagem por São Paulo, diz que “Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína”. As ruínas servem de metáfora para um tempo inacabado. Indicam a fragilidade da tradição, a precariedade da noção de projeto e a instabilidade dos valores em países como o Brasil, onde o descontínuo é a regra. Representam o tempo iminente da decomposição da carne.

H.K. Os títulos das suas obras dão a entender que existe uma história na origem de cada uma delas, como na peça monumental criada para a Fundação Cartier: Celacanto provoca maremoto.
A.V. Quando eu era adolescente, em todo lugar no Rio podíamos ler a frase “Celacanto provoca maremoto” pixada nos muros. Todo mundo se perguntava o que isso poderia significar. Parecia um slogan revolucionário! Vivíamos na ditadura militar. Havia diferentes interpretações nos jornais... O celacanto é um peixe de águas abissais já em extinção. Finalmente, descobriu-se que um grupo de adolescentes estava por trás desses grafites. Eles tinham visto um episódio do National Kid na televisão onde aparecia um cientista louco que declamava em tom profético: Celacanto provoca maremoto! Celacanto também evoca a maneira desordenada e casual de como são repostos os azulejos quebrados dos antigos painéis barrocos, sem a menor preocupação de preservar sua composição original. Essa confusão causa uma certa vertigem. Já em Celacanto, embora possa parecer, a composição do painel não se dá ao acaso. Tudo é calculado e cuidadosamente construído. Paulo Herkenoff se refere a essa obra como uma calculada arquitetura do caos, onde se destrói uma ordem e se constrói uma desordem. Também adoro a idéia dessa frase como alusão ao mar. Penso na grande onda de Hokusai. Penso em Herkenhoff dizendo que o Barroco é um estilo que começa e termina no mar: que é inaugurado, etimologicamente, na origem da palavra portuguesa barroco, a pérola imperfeita, e se esgota no rococó, que vem do francês rocaille, concha.

H.K. A própria superfície é acidentada, e com fissuras marcadas.
A.V. A idéia é recriar fisicamente o azulejo. Por isso trato a tela com uma espessa camada pictórica, formada por uma mistura à base de gesso que ao secar produz rachaduras. Sobre essa superfície eu aplico a pintura, em tons de branco, azul, terracota. Essas fissuras, ou craquelê, foram introduzidas em meu trabalho em 1990 e se referem à cerâmica Song chinesa. A superfície craquelada cria texturas diferentes de acordo com a maneira como racha. Parecem escamas. Esse trabalho fala sobretudo do mar na arrebentação. O lugar onde as ondas quebram e as conchas se partem.

H.K. A construção modular do Celacanto cria um ritmo muito forte, musical.
A.V. A própria cadência dessa frase em português reproduz um ritmo melódico. Essa obra é musical. O grid formado pelos módulos das telas-azulejos estabelece um pulso, um ritmo contínuo e regular. Já os desenhos das telas produzem ondulações em fluxos melódicos, em ritmos autônomos, dessincronizados, criando uma musicalidade sincopada, como no choro e no samba. Percebi essa relação muito claramente ao ouvir o “Choro para metrônomo”, de Baden Powell.

H.K. Celacanto provoca maremoto, Linda da Lapa et Linda do Rosário foram especialmente criadas para a Fondation Cartier. Como foi a sua relação com a arquitectura de Jean Nouvel?
A.V. Quis manter, na medida do possível, a transparência do prédio. Por isso criei obras de inspiração arquitetônica. Essas obras recriam paredes, são como paredes. Celacanto é uma enorme onda cristalizada no centro do grande salão principal, que invade de azul todo o ambiente, estendendo-se até a calçada. O que proponho é um banho de mar, um mergulho na obra. Através das ruínas parece haver o eco de um outro prédio dentro do prédio. Vestígio de alguma antiga construção.

H.K. Nos últimos anos, as sua obras parecem estar a tornar-se mais abstractas.
A.V. Na série das Saunas a pintura sai do campo conceitual de referências iconográficas históricas e passa para o campo do sensível. Esses ambientes são atemporais. Mas são obras figurativas, que aliam figuração a geometria. Trabalham questões inerentes à pintura, como cor, composição, perspectiva... Estas obras dialogam com a arquitetura e o espaço, mas de maneira virtual. São espaços projetados. Busco inspiração nos botequins, nos hammams, nas piscinas, matadouros, banheiros, hospitais.

H.K. Trata-se de uma arquitectura mais interiorizada...
A.V. É, elas trabalham o espaço dentro da tela. Criam uma ilusão do espaço. São puro dentro. Câmaras secretas, sem portas ou janelas, como sacristias. Como na arquitetura barroca e sua independência da fachada. São um interior sem exterior.

H.K. E há uma vertigem...
A.V. Uma vertigem relativa a esse espaço labiríntico. Abre-se um campo atrás da superfície da tela, como uma viagem através do espelho. Nos trabalhos anteriores eu costumava abrir esse acesso através do corte. Nestes quadros, começo trabalhando com uma superfície monocromática: branca, rosa, verde, azul... Em seguida eu projeto a malha geométrica que determina a composição e a perspectiva. Pinto então as sombras, a luz, os meios-tons, numa palheta muito complexa. Em O sedutor, por exemplo, trabalhei com uma palheta azul que ia do azul quase branco ao azul quase negro, passando por todos os tons possíveis intermediários. Também procuro uma dinâmica na cor, adicionando temperatura a ela. Esfriando-a com violeta ou esquentando-a com amarelo, por exemplo. Comecei a me interessar enormemente pela pintura de Morandi. Penso que esses ambientes têm uma dimensão psicológica importante. Eles podem ser qualquer lugar. Um espaço ligado à morte ou ao prazer.

H.K. Porque é que as Saunas têm os cantos arredondados?
A.V. Acho mais legal assim. Talvez porque busque uma certa diferenciação no suporte. A composição já é formada de muitos ângulos e quinas. Elas podem representar também a passagem para um campo virtual, pois remetem às telas de vídeo.

H.K. E esta mancha de sangue que se espalha no primeiro plano em The Guest?
A.V. São o início de uma nova série, a das saunas contaminadas. Na primeira série, a luz é a protagonista. Nestas últimas existem as transparências, os líquidos. O sangue e a água. A água age no grid, deformando-o. O sangue age por entre os azulejos, contaminando o grid de vermelho. Ele nasce por entre as gretas, pelas fendas. Insinua-se uma narrativa. Ela contamina a neutralidade desses ambientes.

H.K. Em muitas das suas obras encontarmos um jogo entre a ilusão e o espaço. Tal como acontece em Margem, onde temos a sensação de que a imagem desliza da tela para a parede.
A.V. Margem é uma obra um pouco à parte. Eu utilizava com freqüência o projetor de slides no atelier. Imagens pareciam flutuar, nas paredes, nos móveis, nas telas... Tinham uma presença fantásmatica. Margem é um espectro. Era uma experiência para dissociar a pintura de seu corpo, que em minha obra estão intimamente ligados. A pintura aqui parece deslizar, transbordar da tela.

H.K. A reinvenção do espaço parece ser um dos seus temas favoritos na pintura.
A.V. De um outro espaço, sim. Como as pinturas no teto das igrejas, onde outro espaço se abre. É um convite para outro lugar.

H.K. Um pouco como as “figuras de convite”, que convidam o espectador a entrar na pintura.
A.V. Para essas obras, tomei como referência as figuras que ornamentavam, em azulejaria, a entrada de palácios, conventos e jardins portugueses dos séculos XVII e XVIII, e que também são encontradas no Brasil. Elas recebem e indicam a entrada ao visitante. São figuras de cortesia. Fiz um jogo de substituição, tomando como referência cenas de canibalismo e imagens de mulheres de um antigo povo selvagem da Grã-Bretanha, de Théodore de Bry. Esses trabalhos fazem parte da série sobre antropofagia e história.

H.K. O que é que a fascina ou lhe interessa na antropofagia? O seu aspecto histórico, antropológico, ou simbólico?
A.V. Me interesso por todos os seus aspectos. A antropofagia está presente em toda a minha obra, uma vez que aí se encontram várias questões, como absorção cultural, desmembramento, desconstrução, transculturalismo, a força devoradora do erotismo... A modernidade no Brasil é baseada nessa noção de antropofagia, na capacidade de incorporar e transformar idéias alheias em pensamentos próprios. Essa idéia está ligada à essência do rito antropófago, a seu caráter simbólico, à idéia da absorção do Outro. Li inúmeros trabalhos de antropologia e pesquisei largamente a iconografia da época dos grandes descobrimentos. Lancei mão desta iconografia em várias de minhas pinturas, especialmente das gravuras de Theodore de Bry em sua obra América. Várias ilustrações de outros autores, mostrando homens devorados vivos, corpos desmembrados, são com certeza exageradas. São como imagens de propaganda. De um lado existia a idéia romântica do Novo Mundo como uma terra idílica e virgem, um paraíso terrestre, e, de outro, uma visão do inferno. Em Mêlée de Guerriers Nus, por exemplo, procurei trabalhar em cima dessa idéia. Parti de uma gravura de Etienne Delaune. Sua representação dos guerreiros demonstrava a fúria própria dos canibais, em uma disputa animalesca, compondo seres de semblantes demoníacos, com orelhas pontudas e dentes afiados. Fiz uma outra versão, substituindo os guerreiros por silhuetas de folhas, vegetação, paisagem. Delaune realizou este desenho sem jamais ter posto os pés na América! Trata-se, claramente, da projeção de um clichê.

H.K. Talvez fosse também uma opinião pré-concebida...
A.V. Sim, pré-concebida politicamente. Trata-se do mais terrível holocausto da história da humanidade. Os europeus tiveram que inventar uma desculpa; a “selvageria” destes povos justificava esse extermínio maciço. A Igreja Católica afirmava que os índios não tinham alma... Até hoje esse processo se repete no campo da política internacional, e está acontecendo nesse momento diante de nossos olhos.

H.K. O seu processo por vezes passa por um jogo de substituição. Como na tela Proposta para uma Catequese que faz a fusão entre um ritual antropofágico e o rito eucarístico.
A.V. Sim, é uma catequese invertida. Nesse caso, quem ensina a lição, o milagre da transubstanciação, são os índios!

H.K. E o que acontece com as outras referências que aparecem nas suas obras, em particular as pinturas de Nicolas-Antoine Taunay e de Jean-Baptiste Debret?
A.V. Em 97, fiz uma exposição numa galeria em Paris. Foi nessa ocasião que me interessei pela missão francesa que veio ao Brasil em 1816 para fundar a Escola de Belas Artes no Rio de Janeiro. Como a pintura acadêmica sempre foi um tabu na arte contemporânea, decidi mergulhar nela. Parodiei várias dessas obras, invertendo significados. Me interessava sobretudo por seu papel histórico.

H.K. A sua obra mostra-se permeável a múltiplas influências, não apenas a referências da história do Brasil
A.V. Sim, múltiplas... Um botequim da Lapa, um canto em Macau, uma piscina em Budapeste, ruínas em Chacauha, um muro em Lisboa, um claustro em Salvador, um hammam subterrâneo no XVIIIème,. em Paris, um delicado vaso Song, uma frase num livro, um mercado em Taxco, uma pele tatuada, um anjo negro em Minas, um caco em Barcelona, um nanquim em Guilim, um açougue em Copacabana, um crisântemo em Cachoeira, uma notícia no jornal, um espelho em Tlacolula, um banheiro de rodoviária, um pássaro chinês em Sabará, o som do violão, um azulejo em Queluz, um charque em Caruarú, uma frase do passado, um quadro em Nova Iorque, ex-votos em Maceió, um vermelho em Madri, um Sento em Kioto, e mais, e mais, e mais...

notas

1 Severo Sarduy, Barroco, Vega Universidade, Assírio Bacelar, Lisboa, 1988, p. 21.