HERKENHOFF, Paulo. Pintura/Sutura. In: Adriana Varejão. São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1996; reeditado em Imagens de Troca, Lisboa: Instituto de Arte Contemporânea, 1998.

Essa é uma pintura de espessuras. Aliás de muitas dimensões da espessura. Compreender o corpo da pintura é também compreender a possível dor da pintura e não abdicar de sua sensualidade e de seus fantasmas. A espessura aqui compreende amplamente, não apenas a materialidade, mas também a densidade simbólica do discurso pictórico. A obra de Adriana Varejão é o exercício de uma intrincada cartografia que vai da China a Ouro Preto, entre a imagem de um portulano e os signos da pintura, do corpo à história. É uma coleta de significantes aparentemente dispersos, que recebem uma conexão dentro de uma lógica das cenas construídas pela artista numa teatralização da história. São relatos antes sem unidade de tempo e de lugar, como na ficção de Severo Sarduy (1). Disso resulta a instauração de uma sincronia no presente, na qual o disperso encontre sua conexão e seu sentido através da ação poética da artista. A obra de Varejão é também uma operação iconológica em que imagens extraídas da história da arte - onde eram escultura, monumentos, louça, gravuras, mapas, ex-votos impressos em livros - passam à condição de pintura, seu filtro e denominador. Insistentemente, o método é operar uma migração de imagens. A artista não pinta um anjo, mas o azulejo onde se imprime o anjo. Pinta a flor da pele numa tatuagem. Anjos e flor se transformam em carne e habitam entre nós através da pintura de Varejão. Encontramos aqui uma primeira dimensão desta pintura, que é a espessura simbólica das imagens. A artista opera aqui no campo que Giulio Carlo Argan denominou cultura de imagens, definida como fundamental na história da civilização (2). Na iconologia, a história da arte é a história da cultura elaborada não pela via dos conceitos mas por meio das imagens, conclui Argan, explicando que a história da arte (do ponto de vista iconológico) é, pois, a história da transmissão, da transmutação das imagens. Depois da iconologia extraída da história da arte e de determinados sistemas de imagens, depois da própria imagem e de seu pathos, tensionados pela introdução de alguns conceitos, então surge revelado na obra de Varejão- e é necessário colocar-se disponível para compreender - aquilo que se define como a possibilidade pictórica, mas agora marcada por sua densidade específica.

A obra de Adriana Varejão tem se desenvolvido com a problematização de algumas questões como a patologia do barroco, a constituição de uma China brasileira, indicativa da presença histórica de traços da cultura oriental na arte do Brasil, e os traumas do processo de expansão colonial, na trilha dos descobrimentos, na tendência a uma visão unificante do mundo. A apropriação e inversão de elementos estilísticos e retóricos do barroco não admitiriam que se reduzisse esta pintura à idéia de citacionismo. O que se consolida é uma espessura da história nessas imagens.

No processo de mediação simbólica, o confronto, a articulação e a perspectiva sincrônica definem a densa significação de cada imagem. Oleg Grabar, em seu The Mediation of Ornament, argumenta que o ornamento é capaz de estabelecer o encontro imediato entre espectador e um objeto de qualquer cultura. Para Varejão, ornamentos e imagens, como resultantes das trocas e circulação de símbolos e tecnologia, são propiciatórios do encontro de culturas. A forma das pinturas ovais deriva dos painéis pintados por Leandro Joaquim para ornamentar o Passeio Público do Rio de Janeiro. No caso de O Filho Bastardo, Varejão trata do processo de violência da colonização, atualizada como etnocentrismo. Inventa uma cena em que um padre estupra uma escrava, "ornada" com gargalheira, instrumento de tortura. Noutra cena, uma índia amarrada em uma árvore vê a aproximação de soldados, reinterpretados da gravura Um funcionário a passeio com sua família, de Debret. O poder – a religião e o Estado, figurados no macho – produz a miscigenação como encontro violento de etnias, culturas, gêneros e sociedades no intercurso da Europa, África e América. Separando as duas cenas existe um corte, que remete a Fontana e Merleau-Ponty: a tela rasgada como espaço violentamente desvirginado revela a carnalidade pictórica da obra. A pintura de Varejão se localiza numa região entre a sensualidade plástica, visual e tátil, e a razão. O oval Mapa de Lopo Homem ou Caminho de Adão se refere ao mapa de 1519 onde se desenha a continuidade geográfica entre Ásia e América. O capricho cartográfico de Homem reconciliava as antigas concepções Ptolemaicas frente a descoberta da América. Reassegurava o papel bíblico de Adão como pai da humanidade. Varejão explora a continuidade como contágio cultural na perspectiva do trauma do conhecimento e do dogma sobre a ordem do mundo. As fendas na tela, costuradas com material cirúrgico, buscam a cicatriz. Janela para o mundo no Renascimento, o quadro põe-se aqui como corpo do mundo. O Quadro Ferido – a vitimação física conecta a pintura de Varejão ao sentido edificante da vida dos mártires, indo do barroco ao mito fundamental da cultura brasileira do século XX, a Antropofagia. Estamos diante da moldagem histórica do corpo pela religião, pelos encontros violentos e amorosos do processo de formação da América, pela políticas de gênero relativas à mulher, pelas lições de anatomia do conhecimento científico e da arte.

Adriana Varejão parece guiada pelo Alfredo Bosi de Dialética da Colonização: “A fantasia é a memória ou dilatada ou composta. Quem procura entender a condição colonial interpelando os processos simbólicos deve enfrentar a coexistência de uma cultura ao rés-do-chão, nascida e crescida em meio às práticas do migrante e do nativo, e uma outra cultura, que opõe à máquina das rotinas presentes as faces mutantes do passado e do futuro, olhares que se superpõem ou se convertem uns nos outros” (3). Varejão sabe que articular historicamente o passado visual significa apropriar-se de uma reminiscência, de uma evidência visual, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Nisso sua arte atua como um processo de agenciamento da história. Sintomaticamente, encontramos muitos auto-retratos como Testemunha Ocular X e Testemunha Ocular Y. Varejão sabe guardar um distanciamento dessas imagens e de seu ângulo utilizá-las na reconfiguração da história. Isso é o estado de exceção: demonstrar a natureza de alguns despojos e buscar o sujeito do conhecimento histórico. Dar novos nomes próprios aos pontos geográficos nas Américas pode ter sido o primeiro ato de conquista. Dar nome foi uma batalha crucial na guerra semiótica (Tzetan Todorov) e na guerra antropológica (Jacques Derrida), no confronto entre sistemas simbólicos heterogêneos e na mudança das relações cosmogônicas entre nomes e lugares. Varejão busca detectar e fragmentar configurações saturadas. Cada imagem é uma passagem para um tempo descontínuo, e, mesmo, heterogêneo. A tela Carne à Moda de Frans Post remete à primeira grande arte sobre o Brasil. A obra confirma que a reconfiguração do passado não é a mera reconstituição de uma era pregressa, mas a recuperação de uma história como capaz de compor validade atual. Na obra de Adriana Varejão, qualquer citacionismo não é mero embarque na História da Arte, mas um trabalho de compreensão da espessura da história e do seu processo de condensação e troca. Afinal, quem afirma é Walter Benjamin, o passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversível, no momento em que é reconhecido (4). Em qualquer momento de sua produção, Varejão opera uma hipérbole da matéria. Esse exagero desnuda o próprio modelo persuasivo da tipologia religiosa barroca e seus testemunhos de martírio. Tal iconografia já não tem uma fé que sustente o milagre e o exemplo edificante. O dogma no Brasil colonial não enfrenta tensões. Produz-se um barroco sem embates da fé. Ainda assim, para Varejão, o barroco está menos vinculado à idéia de movimento e ritmo, do élan vital de Eugênio Ors. O barroco toma caráter político de Retórica e forma persuasiva, permitindo aproximá-la de um nome tão díspar como o Cildo Meireles de Missões. Para o barroco brasileiro, sendo competição entre irmandades religiosas de uma mesma fé, sua crise latejante era a liberdade e o lugar social do escravo e do mulato artesão. Essas imagens deliberadamente recusam a condição de monumento. É que o próprio monumento vive a sua crise.

O barroco recupera sua espessura retórica, como argumento persuasivo da catequese, preparo ideológico dos caminhos da Conquista. Depois do maravilhamento, o barroco recebe uma inflexão grave frente o mundo que justificava. A obra de Varejão trata da interação de planos de representação: a história da arte serve para rever criticamente a pretensa totalidade da história que molda e é moldada pela arte. Um tecido de histórias setoriais imbrica temporalidades sem curso único. História da arte, história do conhecimento, história das trocas culturais e história do corpo - tudo se contagia inesperadamente. Não existe uma história única, existem imagens do passado propostas a partir de diversos pontos de vista, escreve Vattimo (4). No recurso ao código de signos e símbolos de cada época ou cultura, Varejão inscreve subrepticiamente suas próprias figuras para subverter a continuidade. Numa iconologia perversa, imagens são retomadas para infração do modelo. E reescrever criticamente a história. Viu-se como, na tela Filho Bastardo, figuras de Debret foram recontextualizadas em nova paisagem histórica, marcando a violência do processo de formulação étnica do Brasil O que era esquecimento e opacidade na história torna-se visível. O processo de presentificação do passado é uma nova transparência. Um jogo de ambigüidades trama a linguagem. Um olhar predatório da história da arte se reterá na atração mais imediata do conjunto de imagens, demitindo-se de perceber o que aí se articula como pintura. Na expansão do campo da pintura, primeiro a espessa carga pictórica modelava-se em forma de relevo, porque pintar é também dar um corpo. Havendo um corpo este pode craquelar, ferir-se. Cortes expõem grande quantidade de massa pictórica como uma paródia da carnalidade da pintura. Para Varejão, a retórica da matéria apresenta-se como uma exacerbação tátil. O caráter não substancial do signo é reafirmado ironicamente na teatralização da pintura, como corporeidade e sua dissolução. Varejão também pinta como "carnação", a cobertura cor de carne na escultura barroca. Em Proposta para uma Catequese – Parte II, áreas brancas contrastam com as densas imagens, parecendo indicar um muro nu ou um vazio de imagens. São no entanto denotações propositadas de páginas de livro, fontes bibliográfica das imagens utilizadas da história da arte. São sobretudo áreas de repouso do olhar no universo em vertigem do barroco, como uma ruptura do acúmulo, excesso, convulsão e horror vacui frente o mínimo.

As ordens religiosas cruzavam oceanos. Traficando representações simbólicas, como os crisântemos no Seminário de Belém, pintados pelo jesuíta francês Belleville, vindo de Cantão para a Bahia. O gosto peregrino trafegava na raia da igreja supranacional dos jesuítas, levados às Índias e aos índios. Na trilha do rococó europeu, o Brasil viu a disseminação de chinesices na Sé de Mariana e em Sabará. Cenas da louça de Macau executadas em vermelho e dourado confessam o desejo de produzir laca. Milagre dos Peixes exemplifica como a superfície (espessa camada de tinta rachada) recompõe sua possibilidade de significar. Aí ou em Linha Equinocial, a pintura organiza a superfície com cacos de louça, como o naufrágio de um galeão ou a técnica do embechado (decoração com cacos de porcelana). Vestígios recompõem a presença da China no Brasil (6). A obra Passagem de Macau a Vila Rica cria uma narrativa horizontal, como nos rolos orientais. Parece nanquim sobre papel. Refere à louça de Macau e ao sentimento barroco no coração sangrante em laca. Igrejas brasileiras situam-se na paisagem chinesa das montanhas de Minas Gerais convertidas em penhascos. Guignard, sonhador dessa China, riscou perspectiva vertical. Na rota de Macau a Vila Rica, Varejão indica o itinerário mental do homem que parecia apreender o mundo como totalidade. Na pintura Comida, Varejão retrata um corpo dependurado entre animais de caça. Espalham-se vísceras e partes do corpo humano em carne viva, alusão à Antropofagia. A qualidade pictórica da obra oferece lastro ao que aparenta ser apenas a complexa elaboração do tema. Tudo se contamina para problematizar a pintura. É na percepção que se fundem imagem e fisicalidade da pintura. Cabe aqui discutir que o bruto encantamento da Antropogafia brasileira não estaria tão próxima do canibalismo de Picabia quanto de um fundo pictórico que remonta ao Boi Esquartejado e à Lição de Anatomia de Rembrandt, e ao Goya do Balcão de Açougue e, sobretudo, da devoração do Saturno. O Géricault de Estudo de Braços e Pernas Esquartejados (evidência de canibalismo de sua Jangada de Medusa) seria retomado por Pedro Américo em seu Tiradentes. Deslocando o olhar da história heróica para a tragédia social, a cultura brasileira arde na lama viva do Mineirinho de Clarice Lispector, transformada no puro pigmento vermelho da Homenagem a Cara de Cavalo, bólide de Hélio Oiticica, e nas trouxas ensangüentadas de Barrio (7). Misturando representação, mimese e presença matérica excessiva, a pintura de Varejão é um ponto de fusão do tempo social, condensando uma atualizada história do oprimido.

O quadro Varal parece um painel de azulejos com cena de caça, inspirada na decoração setecentista portuguesa. De uma trave pendem pedaços de corpo humano esquartejado de livros de anatomia, ex-votos, relicários com símbolos hagiográficos. A cena antropofágica é diagramática de problemas pictóricos enfrentados por Adriana Varejão. Subjacente à Antropofagia, está a concepção de "visceralidade", vigente na arte brasileira nos anos 60. A pintura atua como paródia da teoria da representação. O ilusionismo enfrenta ironias. A restauração de azulejos, reproduzida em Proposta para uma Catequese, é tratada em trompe l'oeil, como remendo dissonante, que não esconde a operação de restauro. Os lados do díptico em tons diferentes, um em azul e outro em grisaille, saído de um prato Ch'ien lung, indica erro de impressão da cor num livro, numa reflexão sobre a arte e a reprodução de sua imagem. O simulacro não se dissimula. Mostra as aflições físicas impostas à tela. No lado esquerdo de Proposta para uma Catequese I, tem-se o interior de um edifício, onde índios, extraídos das representações fantasiosas européias de canibalismo, investem com seu tacape contra uma figura do Cristo, reinventado da obra de Theodor de Bry. É o que se poderia denominar uma outra catequese ou lição de modernidade, já que os índios ensinam Antropofagia: Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. (...) Contra a verdade dos povos missionários (Oswald de Andrade, Manifesto Antropófago. 1928). Na recuperação poética da história, tudo ganha unidade cromática em pintura azul e branco, à moda de azulejaria. É quase como o Mestre Ataíde, que em Minas pintava em madeira na forma dos painéis de azulejos. O festim canibal é encimado por uma cartela com a inscrição da passagem do Novo Testamento sobre a instituição da Eucaristia: Qui manducat mean carnem et bibit meum sanguinem ia me manet, et ego in illo (João, 6, 57). O dogma da transubstanciação eucarística enfrenta sua analogia com Merleau-Ponty: É emprestando seu corpo ao mundo que o pintor muda o mundo em pintura (8).

Abri o suposto corpo e desdobrai todas as suas superfícies, escreve J. E. Lyotard em sua Economia Libidinal (9). A espessura do corpo demanda uma dissecação. Existe aqui outra relação entre espiritualidade e carne, ao lado da vaidade, fetiche ou status: a tatuagem. Tatuar-se é ter o mundo representado em seu próprio corpo e dar à sua carne a espessura do mundo. Sandi Fellmann diz que como a boa caligrafia japonesa, uma tatuagem captura um instante para toda a eternidade. Aqui estava a beleza criada através de meios brutais. A elegância discreta obtida através da violência (10). Aqui o corpo se imola em autofagia. A arte feita em corpo humano vivo não se perde na morte. A decorticação no Japão consiste na remoção da pele inteira, preservação em óleos e montagem, como no museu da Universidade de Tóquio. Guardam-se as obras-primas da arte da tatuagem ou Irezumi. Para Varejão, a tela é a superfície que o homem marca com suas cicatrizes simbólicas, por isso encontramos a pintura Pele tatuada à moda de azulejaria. Nas pinturas intituladas Laparatomia Exploratória, sobre a azulejaria se espalham peles tatuadas decorticadas. Aqui parece ter ocorrido uma devastação dos corpos, modo traumático capaz de revelar seus segredos. O corpo explode em vasos sanguíneos de carne e vasos de cerâmica com padrões chineses, islâmicos, chineses com influências islâmicas no contágio das culturas. Em Libre, um peito de pele Irezumi decorticada voa sobre azulejos fazendo um percurso de sangue como perda da matéria na trajetória da liberdade, diz Varejão. A vertiginosa trilha das asas de anjos tatuadas é a rota do próprio olhar. Em Laparatomia Exploratória III abrem-se duas peles decorticadas. Numa, a artista "tatuou" o fluxo caligráfico da clássica obra Dez mil ondas do rio Yang Tse de Ma Yuan (dinastia Song). No contraponto, sobre o umbigo, estão as ondas concêntricas do mar oceano, saído de Le Globe de Behaïm (1492). O olho atravessa o rio-tempo ou se detém no umbigo do mundo. O olhar encontra-se com a carnalidade da pintura, o provável espelho de sua dimensão física.

É a lição de anatomia a disciplina que pode elucidar a espessura e o corpo da pele, como numa laminação da imagem. Na obra de Varejão manifesta-se um tipo de interesse na espessura da pintura, que seria através da pele tatuada e da azulejaria, ambas com suas imagens impreganadas no corpo-suporte. Azulejo é pele do edifício e temperatura da superfície. Tatuagem é a imagem mais aderida ao corpo humano. É indelével imagem feito carne, tão permanente como o corpo na vida. A espessura já não se faz apenas com a acumulação da pintura sobre o suporte da obra, mas no caso de Varejão, a espessura se dá para dentro da superfície pictórica. Os cortes atingem níveis mais profundos que a própria superfície da tela. Se a imagem tinha sua corporeidade, anunciada e palpável, agora Varejão abre-a como se trabalhasse numa mesa cirúrgica. Varejão opera num ponto físico mais remoto. Age dentro da tela. Corpos agora explodem em tubos de sangue, orgia em cádmio, postas de Alizarin Crimpson, pedaços de carmim, telas de pele, cacos de massa pictórica, carne cerâmica, vasos sanguíneos de porcelana - cacos, vasos cerâmicos que pousarão como carne viva em seu dia de existência como mimese pictórica. Nas telas, a cobertura pictórica espalha-se sobre a superfície como mimese do corpo das coisas, não apenas por representação da imagem, mas por uma certa transposição ideal do volume. Na arte brasileira, Iberê Camargo na pintura Lapa (1947) tem sua primeira produção singular no tratamento matérico ao conferir espessura à imagem conforme uma lógica dos elementos da cena. Paredes brancas são pintadas chapadas. São emassadas e lisas como se a pintura fosse argamassa de um pedreiro. As árvores são tratadas com espessa massa de tinta. Pinceladas revoltas em relevo formam o volume concreto das copas. Na Pop Arte, a obra de Wayne Thiebaud segue essa lógica, com os relevos aplicados à moda de um confeiteiro sobre as imagens de bolos. É essa a lógica que encontramos inicialmente na produção inicial de Varejão em telas como Oratório e Anjos (1988, Stedelijk Museum, Amsterdam). A pintura é relevo convulso como uma talha barroca. Nesse momento a pintura se expande para assumir o caráter de um relevo, para mais tarde atingir a condição de modelatura com tinta. Na 22a. Bienal de São Paulo (1994), Varejão apresentou quatro pinturas cujo título ambíguo, Extirpação do Mal, era complementado pelos respectivos procedimentos terapêuticos: por overdose, por punção, por revulsão e por incisura. A pintura é escrutinada por uma mirada cênica da ciência. Conhecimento e teatro se desdobram nessa fonte única. A pintura flui em tubos, imerge em bacias, é sugada por ventosas, se perfura por agulhas e, finalmente, a espessura da imagem pode ser laminada e o corpo da superfície desaba dramaticamente sobre uma maca. A pintura é o personagem da cena.

Agora na obra de Varejão surge uma azulejaria vulgar e geométrica, abstrata. O botequim e o açougue substituem as quintas portuguesas setecentistas e os conventos brasileiros com seus painéis de azulejos pintados. Na obra mais recente, a base imagética sobre a qual Varejão lança seus dramas pictóricos, torna-se mais rala, como uma programada perda de espessura. Os azulejos já não trazem desenhos inscritos em seu corpo. São modernos. Monocromáticos. Severos e cegos, assépticos. Os brancos, como uma tela, sofrem em sua pureza as fissuras da experiência. Em América (1996), o movimento dos continentes no oceano das navegações revela-se nos territórios ignotos: a América, a América do Sul e o México. Isso é um possível mapa de pergaminho humano, sangrante. O mapa é paisagem de dilacerações, sangramentos, lancinações, despencamentos da carne. Em tudo há uma aflitiva distância A exploração do território, em Espécimes da Flora, cultiva flores carnudas que ensangüentam os azulejos brancos e verdes, asséptica alusão à natureza. É um jardim de flores decorticadas com pele e carne, saídas umas do desenhos botânicos científicos e outras de tatuagens orientais. Abundam flores carnudas, com sua sexualidade exposta no falo envelopado pela pétala branca do copo-de-leite, dos manuscritos de Christian Mentzel ou de Alexandre Rodrigues Ferreira. A flora se completa com botões de cerejeira, símbolo da brevidade e transiência da vida, e peônias tatuadas pelo mestre Horijin nos mamilos de um homem, confrontados por Varejão com a Iandiparana, flor com miolo em forma de seio. O Éden é um jardim de dores, prazeres e pulsões. Para falar das Corpografias, de Francisco Faria e Josely Vianna Baptista, Severo Sarduy lembrou Lacan e a idéia de inscrição, cicatriz ou tatuagem, sutura (11).

Numa prateleira de bar na pintura Distância, garrafas enfileiradas trabalham a existência da linguagem. No código de mensagens, as garrafas com uma carta nadando em óleo não têm rótulo. As garrafas verdes com rótulo de mar têm somente óleo de linhaça. São imagens de mares vindas de aquarelas para expedições de Cook e outros desbravadores de mares. As garrafas com rótulo de céu são transparentes. Um céu é de Delacroix. Os demais são variantes criadas por Varejão como passagem do tempo e sua inapreensível dimensão. É necessário estabelecer a comunicação nesse mar de óleo de linhaça, que é o utilizado em pintura. A linguagem se estrutura mesmo no náufrago solitário.

Publicado originalmente em Pintura/Sutura. São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1996 O autor baseou-se em 8 entrevistas com a artista realizadas entre setembro de 1993 e agosto de 1996.

notas

(1) Irezumi in Corpografias de Josely Vianna Baptista e Francisco Faria. 1992.

(2) Essas idéias iniciais foram desenvolvidas pelo autor em Adriana Varejão, da China Brasileira à Unificação do Mundo (Galeria Revista de Arte, 1992, n. 31:.24-31) e Adriana Varejão: Páginas de Arte e Teatro da História (Galeria Thomas Cohn, 1993). Ver o preâmbulo de Argan ao Guia da História da Arte, de Maurizio Fagiolo (ed portuguesa, 1992).

(3) São Paulo, Companhia das Letras, 1992.

(4) Sobre o conceito da história in Obras escolhidas. São Paulo, Editora Brasiliense, s/d. Nestes parágrafos ocorreram diversas paráfrases deste texto. (5) Postmodernidad: una sociedade transparente? in En torno a la postmodernidad. Barcelona, Anthropos, 1990.

(6) Paulo Herkenhoff. Varejão - A China within Brazil in Varejão, Amsterdam, Galeria Barbara Farber, 1992.

(7) Paulo Herkenhoff, Europa de Almuerzo - Receta para el arte brasileño.Poliester, México, 1994, 8: 8-15.

(8) L'Oeil et l'Esprit. Paris, Gallimard, edição de 1986.

(9) Économie Libidinal, apud Néstor Perlongher, op. cit. nota 1 supra.

(10) The Japanese Tattoo. Nova York, Abbeville Press, 1986.

(11) Carta aos artistas em 10 de julho de 1992, in op. cit. nota 1 supra.