HERKENHOFF, Paulo. Glória! O grande caldo In: Adriana Varejão. São Paulo: Takano Editora Gráfica, 2001.

. Adriana me havia falado de “caldo” no mar, nesse mundo de convulsão barroca em que os corpos dos anjos parecem com ou se sustentam apenas na desordem convulsa das ondas, vagas, vagalhões, maremotos, marés em fluxo de energia conversora de correntes marítimas em correntes óticas com perda de direção imposta contra a malha, para além da grid, corroída, imperfeita, estalada, craquelada como pele fendida, carnalidade cozida em fogo, mar azul barrocorococó, território costeiro de volutas, acantos, espirais, partes do corpo, porém tudo como paradoxal inteireza conceitual de fragmentos na totalização da superfície, com suas dobras, marolas na praia, branco, monocromos, luz, porto a que se chega após navegar, vagar, deslizar sobre a superfície simultaneamente construída, quase alvenaria de azulejo e liquidez em movimento do espelho d’água, manchado, quadriculado, despedaçado, corroído, deslocado, descombinado harmoniosamente, de uma aquosidade pétrea como pedaços d’águas turbas do Negro e Solimões no encontro formador do Amazonas, dessa pororoca ocular, dobrando a vista, desdobrando a alma em dobra leibniziana, filosoficamente desestabilizante do sentido político-argumentativo da forma e do monumento barrocos na análise arganiana dessa instabilidade da alma espelhada na construção física, especularidade gongórica do excesso pictórico, do excesso visual, do excesso de história, dos excessos coloniais relidos, rearticulados para a exposição do sistema de uma ordem em crise, espelhado na anatomia dos corpos fragmentados com mãos-toque agarradas a instrumentos, chifres ou detalhes arquitetônicos ao alto, cabeças de corpos descontínuos em queda, barrigas-panejamento-volutas-mar, pés sem apoio, salvo nuvens invertidas em descenso na catedral oceânica, abismal, abissal, rodopios-vertigens, mar interior convulso sem céu, dando em praias de nada, luz craquelada, corpo exposto fragmentos unidos pela desconstrução da monumentalidade de bordas corroídas do quadro como precisão torta de uma linha reta de Mondrian como retângulo azul, azulejo, água, aquarela, carré de transparência nebulosa, conchas sem vênus, vulvas e corpos sem órgãos unidos no desejo libidinal de pura força-energia sem realidade anatômica e pura pulsão visual — movimentos que se terminam em pontas convexas, buscando o contacto com o outro corpo azulejado, coito cósmico, espaço feminino devorador, vaginas dentatas cerúleas, marinhas, transparentes monstros encorpados em vagas na maré do olhar, tudo levando impreterivelmente, mar de pesos, Oceano de fragmentos arquitetônicos em convulsão no rodamoinho em que segue a corrente, mas que flutua, mas não cede à gravidade porque Mar oceano de cabelos, plantas, conchas, espirais, volutas, cílios encapelados no oceano onde navegam, remam, sopram, vagueiam sem rota, sem bússola, sem astrolábio, sem portulanos, mas com rumo certo por linhas tortas das partes integradas pela desarticulação da homogeneidade da superfície por suas quebras, fissuras, diferenças, não combinações pois o mar de açoites, vence o corpo, toma o corpo, mergulha o corpo, leva o corpo, envolve o corpo, viaja o corpo, carrega o corpo, encapela-se como corpo-rebote, reboteia o olhar no caminho visual sinuoso numa direção certa (direita para esquerda), sem defesa, sem volta, sem flutuação, sem navegação, sem nenhuma possibilidade de resistência que não seja a plena experiência daquilo que quer e faz uma artista potente no pleno exercício de sua potência: Navegar nessa arte é uma experimentação da grandeza como enfrentar o Amazonas, ou o Mao Tsé-tung no Amarelo: Há uma saga do olhar: Há um golpe n’água que é história em marcha, contra-marcha, direções, desvios, rupturas, quedas, apoio no vazio, risco, a solidez do impalpável, frio sem ser gélido, branco-luz com calor, a carne da matéria eleva a temperatura inorgância do azul e do branco e restaura a humanidade desses corpos — todo e cada um dos azulejos, independentemente de suas formas humanas ou antropomórficas — pela presença de terra onde parecia haver puramente água e luz, dissipação e movimento, desagregação e afogamento do olhar, pois afogado, o olhar transforma a água azulada em lente com a qual escrutina a superfície do mundo, experimenta o conflito entre sua lógica logocêntrica (the grid!) e a imprevisibilidade do desejo, do acaso no Espelho d’água, pele do mundo, córnea maculada, mar de belezas, já que por aqui viajam todos — não vi nenhum espectador não entrar; não vi nenhum não viajar; não vi nenhum não se maravilhar; não vi nenhum não gostar de arte; não vi nenhum recusar o sensível; não vi nenhum rejeitar o símbolo; não vi nenhum analfabeto visual diante desse ilegível; não vi nenhum parado (mesmo que não se movesse), porque parece haver um movimento do nervo ótico, um aceno de pálpebra sobre a superfície da pintura, como marola sobre o mar numa tarde de céu limpo de verão: esse é um barroco sem deus, sem dor, puro acontecimento visual — queria ser uma gaivota neste mar sem anunciar terra firme que não fosse a própria possibilidade de navegar sem fim, enquanto durasse o olhar no mar camoniano.
— Rio de Janeiro em 23 de março de 2001

II. A articulação das telas-azulejos por Adriana Varejão em Azulejões parece construir o acaso de Mallarmé. Dissolve as grandes imagens dos painéis setecentistas numa cacofonia de cacos de cenas, confluindo para a constituição do grande mar. A primeira referência de Varejão à história da arte no Brasil se daria em relação ao emprego do azulejo português na decoração dos grandes edifícios coloniais. Para melhor compreender o tecido cultural em que a artista opera, há dese entender, primeiro, como essa tradição da azulejaria integrada à arquitetura foi retomada no Brasil, a partir da década de 30. Em sua base estaria a figura de Lúcio Costa, principal responsável pela incorporação da arte no edifício do Ministério da Educação, no Rio de Janeiro. Os grandes painéis de azulejo encomendados a Portinari para o novo prédio governamental pareciam remeter à antiga tradição colonial brasileira(1). Reiterava-se, por essa época, a posição de um modernismo que não dispensava a recuperação de seu passado cultural para projetar seu futuro e sua identidade como país. Nesse processo, outros painéis de azulejaria foram também encomendados a Vieira da Silva, Burle-Marx, Djanira e Athos Bulcão(2). Teria sido um terremoto a causa “natural” desse maremoto de azulejos? Na reorganização do precário, que aparenta falaciosa regência pelo acaso, ocorre uma calculada composição como arquitetura do caos. Varejão evoca em Azulejões o fato de que tradicionalmente os azulejos quebrados num painel são substituídos por qualquer outro, sem recomposição da imagem em falta. A mais marcante experiência da aplicação do azulejo no Brasil é desenvolvida por Athos Bulcão(3), na segunda metade do século XX. O artista entrega aos operários a decisão de como aplicar os azulejos abstratos — em geral, uma única imagem. O resultado estético dessa atitude de Bulcão é um imprevisível jogo visual produzido com base em determinadas regras. Escapando à decisão final do artista, tal resultado acaba por gerar uma experiência política de resgate do olhar sensível do operário como exercício subjetivo da percepção e da escolha. Numa sociedade com rígida estrutura de classes e alta imobilidade social, a atitude de Bulcão estabelece um diagrama do sistema da arte como campo de experimento social em que ocorreria a utópica desalienação do operário. Com Bulcão, a estrutura da azulejaria permite improvisações, numa correspondência visual do jazz. Quando a arte é música, Azulejões cria estranhamento. Cria um ritmo com imagens disjuntivas, assincrônicas. Se o espaço parece desregulado, é porque Azulejões é uma música construída com síncopes.

Enquanto Azulejões indica uma vontade arquitetônica residual, aquela reintrodução processual do sujeito (o operário) por Bulcão identifica sua obra com as conseqüências do neoconcretismo. Interior (1955), remoto projeto de arquitetura da experiência de Lygia Clark, conectava-se ao plano de Piet Mondrian para o salão da Senhora Bienert, em Dresden, na década de 20(4). O neoplasticismo alimentou o neoconcretismo na direção da espacialização arquitetônica da pintura, de modo oposto ao que se teve no modelo ideológico de colaboração entre arte e arquitetura de Oscar Niemeyer e Portinari, e às posturas concretistas de Waldemar Cordeiro de integração de arte, design e arquitetura.

III. Diferentemente do caráter público e da contemplação distanciada dos painéis da azulejaria moderna, Azulejões põe o espectador no centro do espaço. Sua estratégia arquitetural foi criar pinturas modulares de 1 x 1m que lhe permitissem ocupar integralmente duas paredes em ângulo da galeria e, desse modo, estabelecer um foco e definir o espaço de mergulho e circulação do olhar. Ao entrar na sala, o visitante cai n’água. Varejão propõe um banho de mar. Essa experiência se inscreve na tradição neoconcretista dos Núcleos (1960-1963) de Hélio Oiticica, arquitetura de planos de pura cor no espaço. O espectador penetra na pintura(5). O mergulho, em Azulejões, converte-se na experiência radical de um “caldo” da percepção, que desestabiliza o raciocínio por imagens. A relação de Varejão com o legado neoconcretista desprega-se do modo formalista contemporâneo, pois se concentra na instância da percepção, confrontando idéias da teoria da gestalt com a fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty. Azulejões põe em jogo certa desagregação do indivíduo como espectador, para que este possa “viver a percepção, ser a percepção”, característica esta de significativa importância na tradição da arte brasileira. Assim, a noção neoconcretista de “arquitetura do instável no espaço”, aplicada ao Hélio Oiticica dos Núcleos, parece adequar-se, também, ao caldo que Azulejões propicia ao espectador como sujeito ativo da ação de ver(6).

IV. O mar é azul. Apesar das diferentes nuances de azul e da presença de branco e marrom, Azulejões funciona como um imenso monocromo azul na percepção fenomenológica do espaço. Remete a Marulho, de Cildo, oceano de milhares de livros abertos com imagens sangradas de mar azul em diferentes tons gráficos e acompanhadas por ondas sonoras, formadas pela palavra “água” dita em muitas línguas. No universo desse artista, ocorrem três grandes monocromos nas cores primárias: Desvio para o Vermelho (1967-84), Fontes (1992) e Marulho (1991-97), correlacionáveis aos monocromos de Rodchenko Cor Vermelha Pura, Cor Amarela Pura e Cor Azul Pura. Interior, projeto irrealizado de Lygia Clark, e sobretudo Núcleos, de Hélio Oiticica, inauguraram, no Brasil, noções de instalação que trabalham a espacialização da cor como arquitetura. O processo econômico de redução ao monocromo arquitetural e a significação política da cor produziram, desde então, diversos exemplos bem-sucedidos, entre eles, O Divisor (1968), de Lygia Pape, A Ilustração da Arte/Economia/Modelo (1975), de Antonio Dias, ou ainda o painel de Rubem Valentim no edifício do Itamaraty, em Brasília (1977), as instalações de Barrio com café e, mais recentemente, a instalação Azulejões, de Adriana Varejão.

Precedido pela pulsação cromática de Rio Vermelho (1983), de Katie van Scherpenberg(7), Desvio para o Vermelho, de Cildo Meireles, reitera o caráter de cor devorante e utiliza uma estratégia de neutralização do valor pelo excesso. Em seu desdobramento espacial, permeando as etapas Impregnação e Desvio, Entorno é uma garrafinha que derrama um dilúvio vermelho pelo chão, conduzindo o espectador a uma alegoria do conhecimento como fluxo, cujas possibilidades são também potência e limite. Todas essas obras — oceano, rio ou dilúvio vermelho — dão indícios de um vagar existencial que mais tarde aparecerá multiplicado na produção de Ernesto Neto, em instalações alvas e translúcidas como Brotonave, Naveorganóide, Navedeusa, Navedenga, Navecasa na navegação do desejo.

Se a existência seria o decurso do tempo numa aludida metáfora ao curso das águas, em Azulejões, ao contrário, essa simbologia se veria subvertida pela quebra do percurso lógico individual de cada uma de suas peças, cada azulejão, por sua dissimilitude de execução e não complementaridade orgânica, pela introdução do ângulo reto na vida da forma barroca, nas discrepâncias visuais, na dissincronia e na aparente cacofonia das imagens. Como na organização perdida das imagens nos azulejos, o conhecimento rompe ordens.

Superfície e suporte da imagem, a tela de Adriana Varejão é o lugar onde a pintura constrói espessura, acumulando matéria. Este acúmulo leva-nos a pensar a artista como sujeito de uma vontade material. As primeiras pinturas de Varejão moldavam imagens barrocas em densos altos-relevos de tinta. Mais tarde, a tela, como suporte planar, sofreria um espessuramento tal qual uma epiderme que admite cortes para revelar sua carnalidade(8). E a “linha orgânica” de Lygia Clark teria sido de certo modo absorvida pelas “linhas de junção” da técnica de alvenaria presente em Azulejões. O folheamento do plano, questão neoconcretista em 1959 tanto nos Contra-Relevos de Clark quanto nos Bilaterais de Oiticica, também aparece na obra de Varejão, em Parede com Incisões a la Fontana (2000). A carnalidade dos azulejos formula um corpo violentamente esculpido nos embates da história.

V. E se não há pathos, algo emerge de mais potente: a própria linguagem.

VI. O barroco marca presença no dito “projeto construtivo brasileiro”, sobretudo na obra de Lygia Clark, nas dobras leibnizianas da fita de Moebius(9), tão cara aos neoconcretos. Instaurou-se assim a devoração da forma racional e geométrica da malha moderna. Nossa arte, como afirmaria o concretista Waldemar Cordeiro, é o barroco da bidimensionalidade. Assim é Azulejões.

É como uma ressaca. Azulejões é um excesso d’água. Um excesso de muitas águas, tipificadas na variança dos temas azulejados. É o mar tenebroso do período barroco. Um mar devorante do estilo, pois o barroco começa e termina no mar. É inaugurado, como etimologia, na origem portuguesa de “barroca”, pérola imperfeita. Esgota-se como estilo evoluído no rococó, do francês “rocaille”, concha, estilo auricular, proposto em Azulejões como olhar náutico sobre uma superfície sensual em que os azulejos cegos, brancos, trazem, antes de seu craquelado, a superfície sinuosa, orgânica, imperfeita e bela da pérola barroca. Azulejões ocorre no mar de arrebentação, onde as ondas se quebram, mas ainda mantém um fluxo. É aí então que o olhar vive a lógica do caldo. Experimenta sua vertigem. Aparentemente se destrói uma ordem e se constrói uma desordem. Sem identificar uma imagem completa, o olhar, em Azulejões, debate-se entre a hipótese do “informe”, de Bataille, e uma total “falta de formas” — “as coisas para as quais não temos formas suficientes são já fantasmas de energia”, diz Jacques Derrida em Escritura e Diferença(10). Tudo sucumbiu a um maremoto da razão. O entendimento passa por uma convulsão azul que desmonta o logocentrismo. Sem ter como resistir, o olhar só sobreviverá se entregue ao dilúvio pictórico.

Despossuído de imagens loquazes, Azulejões apenas expõe o barroco. Expõe o estilo e a própria noção de história da arte. Azulejões aparenta operar um silêncio político, uma pane da História, mas não sua ausência. A pintura, já sem pauta aparente, problematiza agora a própria noção de história. Em Azulejões, como já vinha ocorrendo com freqüência na pintura de Varejão, tudo o que há de história é apenas a noção problematizada do barroco(11).

VII. Numa dada perspectiva, a referência mais próxima ao projeto de pintura de Adriana Varejão é a pintura alemã, sobretudo a de Anselm Kiefer, em seu modelo de discussão da história. Já há muito se vai a pintura de história praticada pela Academia no século XIX, modelo encomiástica da visão positivista oficial. Se Kiefer discute seu passado cultural, o peso da culpa alemã, Varejão, em sua obra, procura evidenciar uma história trágica que propicie uma elucidação dialética do presente, como ocorre, por exemplo, em Filho Bastardo, em que problematiza a questão de nossa origem. Sua postura estaria mais próxima de uma noção de artista como agente da história, a mesma que se verifica em Cildo em obras como Cruzeiro do Sul (1970), Tiradentes:Totem-Monumento ao Preso Político (1970) ou Missão/Missões (How to Build Cathedrals) (1987)(12). Os artistas agenciam a história de modo a lançar uma luz esclarecedora sobre as hesitações e opacidades que deformam a percepção do presente. Apropriando-se de imagens de Debret, por exemplo, Varejão, em Filho Bastardo, problematiza a origem do Brasil como possibilidade não de autenticar determinada origem, mas antes de expor sua perturbadora opacidade.

A frase inaugural de Michel Foucault sobre Nietzsche, genealogia e história em Microfísica do Poder apresenta a seguinte definição: “A genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos”(13). Admitindo um sentido polissêmico para “genealogia”, Foucault indaga: “por que Nietzsche recusa, pelo menos em certas ocasiões, a pesquisa da origem (Ursprung)?”; Foucault aponta na genealogia uma busca problemática e confirmadora da realidade, para então aduzir, “o que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem — é a discórdia entre as coisas, é o disparate”, e conclui que “a história ensina também a rir das solenidades da origem”(14). A obra de Adriana Varejão traz a pintura como uma história de corpos. Se a matéria pictórica é a carnalidade, a iconologia é o território de articulação do corpo com a história, via a pintura. Examinando o horizonte histórico das Américas, o grupo General Idea afirma que os novos mundos não se descobrem, se criam(15). Varejão embaralha pergaminhos, esclarece palimpsestos, conduzindo tudo a uma reescritura da cena adriana varejão primal da origem. Em Filho Bastardo (1992), associa pranchas de botânica, cenas da família portuguesa, imagens do clero e representações etnográficas de mulheres indígenas e negras da Viagem Pitoresca de J. B. Debret (1834-39), atribuindo novos papéis aos personagens e construindo cenas de violência sexual como a origem do processo de miscigenação no Brasil, numa espécie de registro imaginário da gênese e de seus atos concretos. A pintura de Varejão, assim como a genealogia definida por Foucault, expõe o corpo inteiramente marcado e arruinado pela história(16). Uma dupla origem é exposta. A primeira se referiria mais diretamente à dolorosa formação étnica desta origem, lugar embaralhado da verdade. A segunda seria uma origem cultural, posto que Varejão percorre múltiplos focos da tradição da arte brasileira, consolidando sua história: os mapas, a azulejaria portuguesa, o barroco, a arte do Brasil holandês seiscentista, os registros dos viajantes, a Missão Artística Francesa e a Academia oitocentista(17).

VIII. Em Azulejões, como já se viu, os azulejos se desgarram das cenas ou escapam de suas molduras para retornar à condição primária de elemento arquitetural. Cada azulejo tem uma dupla função construtiva: servir como unidade modular do revestimento arquitetônico das paredes e também como parte da malha da imagem. Todos deixaram seu lugar nas molduras ou nas cenas pastorais, históricas ou edificantes com que revestiam as paredes. Separados fisicamente, desarticulados no sistema da imagem e rearticulados arbitrariamente enquanto superfície da representação para serem seus fragmentos, os azulejos tornam-se simples água. Separados, como se fossem fisicamente “figuras avulsas”, e fragmentados, enquanto partes infiéis de uma imagem maior totalizante, os azulejos tornam-se puro mar. Ao mesmo tempo, em Azulejões, essa conversão dos ladrilhos em líquido significa uma transformação do estado material para o estado visual. Sua liquidez é também a conversão do caráter edilício do monumento em puro fenômeno de tempo. Este mar fica azul e duro como se pedra fosse.

Na impossibilidade de uma reconfiguração das imagens originais, Azulejõesse organiza como fragmentos justapostos em fluxos vorazes no espaço da percepção cinemática. Poderia ser uma alegoria do capitalismo avançado em sua forma contemporânea de sistema mundial. Azulejões seria a construção diagramática de uma penosa totalidade globalizada, “tão vasta que não pode ser abrangida pelas categorias de percepção natural e historicamente desenvolvidas pelas quais os seres humanos se orientaram”, como descreveu Fredric Jameson(18). Paradoxalmente, cada azulejo isolado, perdendo sua função na imagem original de seu próprio conjunto, encarna uma fragmentação do olhar e uma resistência diante da latência destrutiva da totalidade do sistema, porque Azulejões suspeita de qualquer universalização.

Não temos como saber se isso é um devaneio visual ou a desconstrução mental da malha. Não é bagunça. Não sabemos se é um labirinto desregulado, uma espiral partida em ângulos, ou um oceano cristalizado como certo mar de Caspar David Friedrich. O olhar sabe, também, que isso não é um quebra-cabeça desfeito. Nos grandes painéis da azulejaria barroca, a malha é apenas conseqüência técnica dos limites dados pelas dimensões máximas possíveis na fabricação do azulejo. Paradoxalmente, é justo onde a imagem é mais forte e convulsiva que Varejão re-introduz a malha da azulejaria, agindo de modo inverso ao do artista barroco que, mesmo sem necessitar da malha, com ela negociava. Complementando esse paradoxo, a malha lhe permite articular o desencontro e atacar a crise da própria noção de estrutura. O caldo é aqui o sobressalto da forma barroca interrompida(19). A operação arquitetônica e imagética de Azulejões parece regida por um não-saber, por uma não-narrativa. A coesão do revestimento da parede resulta em um não-todo visual, apreendido como esforço de formulação de sentido da história. A sabedoria barroca, nos diz Bolívar Echeverria, “é uma sabedoria difícil, de tempos furiosos, de espaços de catástrofe”(20). Cada Azulejãoinstaura a hipótese de problematizaçãodo processo de formação de valor no capitalismo, com a destruição qualitativa da imagem e o confronto entre valor de uso e valor de troca.

IX. A territorialização do olhar, com o espectador ao centro, permite comparar os Azulejões de Adriana Varejão à obra recente de Roni Horn. Em seu projeto Some Thames (2001), Horn apresenta dezenas de imagens das águas do rio Tâmisa sem qualquer texto, de modo exatamente oposto ao que fizera na obra anterior Another Water(21), em que muitas dessas imagens vinham acompanhadas por notas de rodapé. Na trajetória da obra desta artista, a relação entre texto e imagem busca incessantemente o espectador em sua condição de sujeito do Verbo. O silêncio verbal de Some Thames trata do momento primordial no processo constitutivo do sujeito da linguagem. Azulejões remete ao tempo primitivo em que a história balbuciava sua constituição sobre um espaço social heteromorfo. A ruína — caráter do drama barroco para Benjamin — não é o vestígio da história devastada.O errôneo esforço de perceber Azulejões como superfície coesa problematiza a idéia hegeliana de totalidade em que tudo seria aspecto de um todo. O silêncio narrativo de Azulejões trata da fratura lingüística na emergência da linguagem como história. E se a linguagem requer um tempo e um lugar, Fernand Braudel, ao estudar o mar Mediterrâneo, formulou seu método tomando por base as relações estabelecidas entre história e espaço geográfico. É o encontro da pintura histórica de Adriana Varejão com a pintura cartográfica de Guillermo Kuitca. “Nada poderia ser mais claro do que o Mediterrâneo definido pelo oceanógrafo, pelo geólogo ou mesmo pelo geógrafo. Seus limites foram desenhados, classificados e nomeados. E o que acontece com o Mediterrâneo do historiador? Não faltam afirmações autorizadas sobre o que ele não é. Ele não é um mundo autônomo”(22). Azulejões introduz uma indagação essencial: este Mar Oceano de azulejos seria o Atlântico ou o Mediterrâneo? Seria a rota pela qual trafegou a forma barroca para a constituição da América ou aquela pela qual navegou o historiador à procura do método? É impossível pensar a cartografia do mar Varejão, mesmo se se descrevesse seu caráter de errância, pois Azulejões tem algo da Grande Onda de Hokusai, como a sensação de estar no vazio da vaga no litoral de Kanagawa.

notas

1 Somente na Pampulha, na década de 40, Portinari — com quem Bulcão trabalhou — veria nos painéis de azulejo uma possibilidade de prática monumental de pintura no espaço público, comparável ao muralismo mexicano.

2 Em São Paulo, a Osirarte, de propriedade de Rossi Osir, teve a contribuição de Volpi, entre outros.

3 Ver, do autor, Para Ver Melhor Athos Bulcão. Brasília: Espaço Cultural, 1987.

4 A respeito das relações entre o neoconcretismo, o neoplasticismo e o De Stijl, ver, do autor, Lygia Clark. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1999, p.35.

5 Ocorreu um impacto dos planos de cores na arquitetura de interior do De Stijl sobre os neoconcretos. Devem ser mencionados M. Buchartz, V. Huszár, G. Rietveld, Theo van Doersbug, J. J. Oud e C. van Eesteren.

6 Esta frase se apropria do texto “Do ato”, de Lygia Clark.

7 A artista explora a saturação cromática dos vermelhos e verdes; as pinturas são pintadas e pensadas para um ambiente totalmente vermelho. Ver, do autor, Rio Vermelho/Katie Scherpenberg. Rio de Janeiro: Centro Cultural Candido Mendes, 1983 e Caveat/Katie. Rio de Janeiro: MP2 Arte, 1984.

8 A propósito, ver op. cit. nota 4 supra.

9 Ibidem.

10 Jacques Derrida. Escritura e Diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995, 2a ed., p.51.

11 A propósito, ver o texto de Louise Neri neste livro.

12 O autor tratou desse assunto em Adriana Varejão, Pintura/Sutura. São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1996, no qual as idéias de “artista como agente da história” e as operações do barroco nas obras dos dois artistas foram discutidas.

13 Michel Foucault. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p.15.

14 Foucault, op. cit., pp.17 e 18.

15 General Idea. El Dorado (Maracaibo). Madri: Galeria Fucares, 1992.

16 Foucault, op. cit., p. 21.

17 Grosso modo, o presente parágrafo foi integralmente transcrito de Castas, Doces Jogos de Sangue e Xadrez de Mentiras, texto do autor para o catálogo da mostra F[r]icciones no Museu Reina Sofia, em Madri, 2000.

18 Fredric Jameson. The Geopolitical Aesthetic: Cinema and Space in the World System. Bloomington: Indiana University Press, 1992, p.2.

19 A obra não trabalha com a percepção distorcida por jogos de perspectiva, como em obras de Cildo e Regina Silveira.

20 Bolívar Echeverria. La Modernidad del Barroco. Cidade do México: Biblioteca Era, 1998, p.224.

21 Ver Roni Horn. Another Water (The River Thames, for Example). Scalo, Zurique e Nova York , 2000.

22 Fernand Braudel. The Mediterranean and the Mediterranean World in the Age of Philip II. Berkeley: Unversity of Califórnia Press, 1996, prefácio à 1a edição. Edição original Francesa: La Mediterranée et le Monde Méditerranéen à l’Époque de Philippe II. Paris: Armand Colin, 1949, p. ix.